Os ibéricos

Saí de casa e a caminho do centro da cidade liguei para o meu pai.
Você pretende assistir ao jogo de hoje à tarde?
Opa. Remanejei os meus horários para isso.
Vamos assistir juntos?
Portugal e Espanha. Não é preciso entender muito de futebol para saber que o jogo vai ser importante. Uruguai é um bom time. Mas se nos próximos dias seremos inundados por futebol, é preciso escolher bem.
(Futebol pode ser divertido. Mas também podem ser as duas horas mais aborrecidas da sua semana. Uma tela verde, o burburinho. Tédio na frente da tevê é o pior dos tédios.)
Desliguei o telefone e fui ao centro da cidade. Desci na estação república, e direto comer num restaurante muito acolhedor, convenientemente chamado de “Estação República”, um casarão com teto alto, dezenas de mesas e excelente comida por quilo. Fazia anos que não ia e achei o estabelecimento um tanto cansado. A salada era boa, mas o siri estava frio. De lá, cruzei a praça da República até a Barão de Itapetininga e entrei na Livraria Francesa. Fiquei paquerando os livros, os títulos jamais traduzidos para o português. Tirei uma foto do mural, na entrada, com cartões de professores de francês. Aí caminhei à procura de um lugar tranquilo para fazer ligações e encontrei o Café Olivier, um aquário apartado da vida selvagem do calçadão.
Pedi um machiatto e anotei num caderno os nomes de quatro ou cinco professores de francês que fossem nativos. Florence, Eugene, Lionel, Guillaume e Euphren. Dei uma espiada na cara deles que apareceu no whatsup. Deixei um recado padrão para todos, dizendo que me interessava a conversação, mas principalmente a leitura. Assim como às vezes dá um desejo meio absurdo de comer um cheeseburguer bacon com molho tártaro, eu andava com um desejo de grávida de ler Roland Barthes em francês, La Chambre Claire. Barthes, o mais sugestivo e livre dos ensaístas. A aula ensaio, a aula que faz parte de um debate infinito confundido com a vida. A vida é mais curta que uma partida de futebol. E sei que se o curso for uma chatice a coisa não irá adiante.
Já eram quase três da tarde. Comprei dois pains au chocolat nesse café e apanhei o metrô novamente, rumo à Ana Rosa. A televisão já estava ligada na GloboNews, a Copa mal havia começado e os repórteres já não tinham assunto e falavam uns dos outros, debochavam do corte de cabelo uns dos outros, uma encheção de linguiça, i.e., tempo de programação digna do melhor jornalismo. Meu pai estava no quarto, trabalhando no computador. Pedi que fizesse um café para nós dois. Tomamos o café com o pain au chocolat e mudamos para a Globo (a Fox tinha uma resolução um pouco inferior) quando a partida já estava nos dois minutos.
A tempo para o replay da falta sobre Cristiano Ronaldo. A tempo para o pênalti. Uma bola impossível de apanhar. Na celebração, o Ronaldo fez uma mímica, como se coçasse a barba invisível. Aquela expressão congelada de estátua na praça, o gogó fálico, o cabelo plástico e a pele morena. Nós aqui comendo farinha e gordura francotupiniquins e encantados com o Übermensch lusitano.
Sei pouco do Cristiano Ronaldo. Sei que o cara é generoso com os seus milhões. Soube pelo meu pai que o sujeito foi quatro vezes o melhor jogador do mundo. E que naquela partida, ele já se revelava o artilheiro da Copa. Meu pai tentava me convencer que a seleção brasileira sob o Tite tinha chance, mas não conseguia imaginar o Brasil ganhando nem de Portugal, nem da Espanha.
Quantas polegadas tem a sua tevê, pai?
Quarenta e nove.
Quero comprar uma tevê. (Para assistir aos filmes franceses. E para rever o Sergio Leone, Bresson, Moretti, Kurosawa e fugir destas séries de seis horas que podiam ter uma e meia.)
Você nunca teve uma tevê, né?
Nunca. Mas talvez seja a hora.
Os comentaristas não têm assunto. Velha guarda, quando a Globo era tudo o que havia e se podia ser rasteiro sem consequências. Meu pai é muito melhor comentarista que esses dois.
A Regina no Whats: “Estou perdendo. CR7!!!!! Lenda!!!!”
A Regina e meu pai são minhas referências no futebol.
Pai, quanto você acha que vai ser?
Um a zero para Portugal.
Estávamos torcendo por Portugal.
E você?
Dois a um para a Espanha.
Do Iniesta eu me lembro. Tem um barbudo na defesa da Espanha que eu já vi.
Tem que comprar a Samsung, hein?
Ouvi dizer que a LG também é boa.
Ah, eu acho que você devia comprar a marca Samsung.
Eugene manda uma mensagem.”Entendi. Boa tarde. São 3 niveis: iniciante,intermediário e avancado. Como você já fez dois anos preciso de fazer uma avaliação para saber exactamente onde você está. Quantas vezes por semana vc quer estudar?”
Não respondo, nem depois, nem nunca à mensagem de Eugene.
A Florence me liga. Hesito em chamá-la pelo nome em francês ou português. Digo que já estudei francês. Que queria aprender o idioma fora das cartilhas. Que sou capaz de cantar Ne me quitte pas. Ela se ri, responde que bacana, você vai poder viajar apenas com esta música. Ironia francófona. Mas entende, topa, ressalta que a gramática é incontornável. Está bem, entendo, eu digo.
A Espanha se recupera rapidamente. Vai para cima. Portugal se assusta. Os jogadores caem bastante. O juiz libera alguns cartões ao longo da partida. Nas margens do campo, os anunciantes são McDonalds e Vivo. Meu pai comenta que o técnico da seleção espanhola foi demitido poucas semanas antes do início do Mundial, por ter aceitado um contrato com o Real Madrid. O técnico de Portugal parece despertar de uma ressaca no segundo tempo. Mas quem manda no time é o Cristiano Ronaldo, diz meu pai. Se ele quiser tirar, ele tira.
Cristiano Ronaldo é o time todo de Portugal. O gol de empate do três a três é resultado de uma falta, uma bola curva na quina do gol, um desafio às leis da física. Uma costura perfeita para uma crônica, aos quarenta e dois do segundo tempo. O olhar agressivo do super-homem, a concentração a laser. Zás.
Seis gols. Jogão. Não perdemos tempo.

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