O filme que o goleiro-cineasta da Islândia sempre quis dirigir

Amigos, a partida que assistimos hoje não foi jogo de futebol, mas sim um daqueles filmes que a gente não consegue tirar os olhos, thriller de suspense onde o crime brutal está sempre prestes a ser cometido, só não sabemos quando, nem por quem.

Posso contar a trama sem medo de roubar a surpresa, pois é daquelas histórias que correm no boca a boca, qual boato, intriga e morte, e portanto, o leitor já deve ter tomado conhecimento de seu desfecho. O filme Islândia x Argentina foi construído sobre um roteiro clássico, time pequeno tentando escapar ileso de uma grande equipe com um assassino brutal, no caso, Lionel Messi, vencedor de 5 Oscars, acostumado a atuar em películas desse gênero, sempre no mesmo papel, que tem lhe consagrado por merecimento inquestionável. O matador, implacável, preciso, que por vezes aparenta-se derrotado quando, numa reviravolta, revela-se ainda mais cruel, frio e repleto de requinte. Mas vejam que este não é um script qualquer, foi muito bem elaborado, em anos de ajuste e ensaios, Eurocopa, Eliminatórias, amistosos. O roteirista, também dentista e técnico, Heimir Hallgrímsson, criou um enredo daqueles de dar frio na espinha, seus personagens, lindos exemplares do ideal nórdico, padecendo noventa minutos dos perigosos golpes do adversário platino, interpretados por atores de fama e cachês igualmente descomunais, como DiMaria, Mascherano, Aguero e companhia.

Aos 19 do primeiro tempo, gol argentino e o filme parecia cair num clichê, a audiência na expectativa de assistir o previsível massacre, ansiando o clímax catártico com Messi decretando o fim derradeiro da simpática, porém descartável Islândia.  Mas, que!, amigos, se digo a partida foi obra de cinema é porque não houve nada de ordinário no gramado de Moscou esta tarde. A reviravolta apresentou-se antes mesmo do primeiro cadáver esfriar, Finnbogason parece surgir de uma fenda tectônica, explode em erupção e atira a pelota em brasa dentro da meta de Caballero, mantendo a gélida esquadra ainda a respirar. Em seguida, os personagens portenhos roubam o quadro, o diálogo com a bola só para eles, e ataques e suspense e morte anunciada, mas ainda não concretizada, iminente inda que indefinida, num drama psicológico a fazer hermanos e nórdicos roerem o que lhes havia de unhas. Nessas ocasiões, o cinéfilo já espera a sequência principal, que vai definir o andamento da história, para seu desfecho esperado ou surpreendente e original, e esta cena não poderia ter sido montada com maior maestria, a bola na marca da cal, o carrasco, o monstro com suas cravas assassinas e olhar inclemente. No outro canto da tela, o herói, representado pelo goleiro e diretor de videoclipes e comerciais, Hannes Halldorsson, que em rara ousadia entre realizadores cinematográficos reservou a si próprio o papel principal em sua première mundial.

A perna esquerda parte em seu golpe habitual, corta o ar, rompe o silêncio num estampido seco e fatal, a bola em sua trajetória hiperbólica encontra a resistência áspera das luvas do arqueiro cineasta. A plateia em êxtase parece não acreditar, Messi em uma de suas mais apagadas atuações, ofuscado por atores outrora coadjuvantes, colabora a contragosto com o inevitável sucesso desta história, transferindo num chute frouxo o protagonismo para seu rival. E este não o largou mais, não soltou a bola, não deixou o roteiro desandar, conduziu a defesa num ritmo cadenciado e incansável, aguentando as insistentes investidas da equipe argentina até o apito e os créditos finais.

Meus amigos, assistimos um filme digno de Hollywood realizado com recursos limitados por uma inexperiente equipe vinda de uma remota ilha glacial, e isso nos provou, de forma inexorável, que o cinema, e talvez por consequência o futebol, também pode proporcionar momentos brilhantes criados através de mãos hábeis e pela dedicação infinita de jovens determinados a contar uma história, e fazer história.

 

 

 

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