Complexo de poodle

Em 1958, pouco antes da seleção brasileira conquistar sua primeira Copa do Mundo na Suécia, Nelson Rodrigues escreveu uma de suas crônicas esportivas mais emblemáticas, “Complexo de vira-latas”. No texto, o brilhante jornalista, escritor e dramaturgo, observou o comportamento dos nossos jogadores nas competições anteriores e cravou o motivo de nossas sucessivas derrotas, a despeito do talento e superioridade técnica que demonstrávamos. Nossos atletas padeciam de um mal psicológico que afetava toda a nação:

“Por complexo de vira-latas entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.”

Pois bem, 60 anos se passaram e hoje somos os únicos pentacampeões, a seleção mais vitoriosa do mundo, única a participar de todas as Copas, com mais gols marcados, mais vitórias, maior saldo de gols e maior pontuação. Inquestionável. Nos tornamos os maiores do maior esporte do planeta.

Porém, desde o último título, em 2002, nosso escrete tem decepcionado em suas participações na competição mais importante. E não por falta de talentos, de forma alguma. Em 2006 tivemos o time com mais estrelas desde 1970: Ronaldo, Ronaldinho, Kaká, Adriano, Roberto Carlos, Cafú, só para mencionar os principais.

Mas isso não impediu nossa derrota para a França. Éramos melhores, superiores tecnicamente, com mais tradição e camisa. Mas perdemos, e pior, não apresentamos o futebol que poderíamos. Em 1982 também fomos vencidos, mas saímos de cabeça erguida, exibindo um futebol espetacular. O esporte é isso, nem sempre o melhor vence, mas deve ao menos convencer.

O fato é que, em 2006, surgiu um novo comportamento em nossos jogadores. O Brasil vinha de 3 finais consecutivas, tendo vencido duas. Nosso complexo de vira-latas havia sido enxotado a pauladas para fora de casa, ao menos no território do futebol, note-se. Pois bem, naquela Copa da Alemanha surge esse novo fenômeno, que tomo a liberdade de me inspirar no mestre Nelson Rodrigues para chamá-lo de complexo de poodle. Isso mesmo, poodle. E você, tal qual os leitores do clássico cronista, deve se perguntar: que diabos é isso!?

Explico: aquela inferioridade em que nos colocávamos deu lugar uma soberba demasiada, passamos a nos considerar hors concours, o crème de la crème do futebol, e uso essas duas expressões só para homenagear os atuais donos da bola. Porque, se é para falar em bom português, vestimos um belo salto alto. E mais, nos tornamos cachorrinhos de madame, acostumados a afagos, a elogios incessantes e à vida boa. Poodles.

O poodle é aquele animal de estimação com pelo aparado das formas mais criativas. Ele tem uma postura vaidosa, é inteligente e faz truques que divertem os donos e seus amigos. Atrás dos portões, sob a segurança, o poodle desfila sua majestosa beleza, é até capaz de latir forte e mostrar os dentes mas, se confrontado de verdade, abaixa as orelhas, esconde o rabo e some dali em disparada.

Parece nossa seleção nas últimas Copas? É o que vos digo.

Em 2006, Globo e CBF armaram um verdadeiro circo para a seleção, todos foram tratados como rockstars, os treinos eram interrompidos por tietes que invadiam o campo para abraçar seus ídolos. Deu no que deu.

Em 2010, nos descontrolamos após o primeiro latido dos holandeses.

E naquele 8 de julho de 2014, nós, os poodles, enfrentamos um pastor alemão treinado e bravo. Tomamos 7 mordidas para nunca mais esquecer.

Mesmo assim, parece que não aprendemos a lição. A seleção brasileira foi à Rússia vestida de empáfia, aceitando, e pior, acreditando no status de favorita, apesar de ter sido recentemente humilhada na Copa que sediou.

Temos ótimos jogadores, nada me convence que Neymar é apenas um cai-cai. É craque. Philippe Coutinho, Thiago Silva, Marcelo, Miranda são excelentes, jogaram bem. Contudo, todo o time parecia desfilar em um concurso de raça. Devidamente tosados, fizeram seus truques e ficaram esperando o veredito dos jurados, ou do VAR, quando, na verdade, estavam enfrentando cães com fome de bola. Passamos por alguns, mas os belgas não perdoaram nossa vaidade, assim como a França não perdoaria se tivéssemos avançado.

Temos talentos, temos tradição, mas não podemos nos acostumar com ração Purina servida com hora marcada. Para voltar a vencer, não é necessário negar nossa estirpe, não somos vira-latas, mas precisamos nos tornar cães de caça, ainda belos, inteligentes e cheios de truques, porém astutos, destemidos, acostumados com estábulos e campos abertos. E o principal, a seleção brasileira deve recuperar seu instinto predador. Se chegarmos ao Catar como um labrador bem treinado, vamos perseguir, caçar e vencer. E ainda dar um show de simpatia e beleza.

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