Samba-reggae e duas heroínas

A cada subida e descida do velho jato da Aeroflot eu tinha certeza de que o avião explodiria no ar e eu me despediria deste mundo ainda muito jovem. Ele lançava estranho vapor e deixava uma espécie de neblina pairada dentro da aeronave. Comemos e dormimos por 25 horas, feito frangos de granja, na longa viagem de Moscou para Quito, onde eu morava. Depois de termos parado em Dublin, Irlanda, ouvimos o comandante avisar que estávamos descendo em Kingston.

Amanhecia quando enxergarmos a pequena ilha do Caribe cada vez mais próxima e o jamaicano calado, meu companheiro de viagem, não se conteve: “Beautiful, beautiful’’. Menciono o fato a fim de estabelecer o primeiro ponto de contato entre Jamaica e Brasil: a beleza.

Se falarmos das diferenças, no futebol masculino ela é estratosférica. No feminino, é menor, mas, mesmo não tendo ganho títulos expressivos, o Brasil se destaca em muitos itens, enquanto a Jamaica participa da Copa do Mundo pela primeira vez. Somos um país imenso perto da ilha caribenha. E na estreia da copa neste domingo, ganhamos com facilidade e nem precisamos recorrer à Marta, nossa melhor do mundo seis vezes.

As semelhanças também são visíveis. As caribenhas chegaram bailando. Reggae, of course; as brasileiras – buscando afirmação – vieram com samba, é claro. “Qual é? /futebol não é pra mulher?” (Jogadeira, de Cacau Fernandez e Gabriel Kivitz). Lá como cá, somos terceiro mundo (apesar de o politicamente correto nos ensinar que “somos países em desenvolvimento’’ – então tá).

E, no aprazível Caribe, há violência e morte tanto quanto (proporcionalmente) no antigo cordial Brasil tropical, azul de anil. Que o diga Khadija Shaw que teve três irmãos e um sobrinho mortos como resultado da violência na Jamaica.

Com Cristiane, a artilheira do Brasil, a violência foi o preconceito. Teve de engolir ofensas e lutar muito para se estabelecer e, de família simples, foi o futebol que lhe proporcionou comprar uma casa para a mãe e o próprio apartamento. Também batalhou contra o preconceito da ausência de mulheres técnicas, passou por processo depressivo, se afastou do seleção, mas voltou coberta de gloria. São duas heroínas destes violentos e lindos países.

Brasil e Jamaica consolidaram o que Assis Valente sonhou com Brasil e Estados Unidos quando o compositor propôs a comunhão de chiclete com banana, em Brasil Pandeiro. A América tão autossuficiente até assimilou a batida da bossa nova, mas está se lixando com a comunhão com Brasil, ao contrário da Jamaica. Ela tem o reggae; Brasil, uma dezena de ritmos representado no samba.

No campo, domingo, o reggae de Bob Marley foi evocado porque Cedella, a filha do ícone que teve a sensibilidade de patrocinar a ida da Jamaica à copa. Do lado do Brasil, o Cristiane evocou o samba, marcou três vezes e, feliz, pediu música no Fantástico.

O jogo foi sério, valeu três pontos, pode ajudar o Brasil a se classificar, mas o espírito do que se viu em Grenoble foi de comunhão entre dois países que se impõem na Europa rica. Tiramos nossas forças do improvável e precisamos de muito mais para sobreviver, mas um samba-reggae de Marley com Gil pode alimentar nossa alma. Afinal, não só de pão vive o homem como supõem a velha Europa e a nova América.

Às vezes, basta a comunhão de corpos de Gil misturando a ginga de samba no reggae Vamos Fugir. “Guaporé, Guaporé/ Qualquer outro lugar ao sol/ Outro lugar ao sul/ Céu azul, céu azul/ Onde haja só meu corpo nu/ Junto ao seu corpo nu”. Ou a comunhão de ideias proposta por Marley em Thank You Lord. “Diga, eu não estou em nenhuma competição/ Mas eu já tomei minha decisão/ Você pode manter a sua opinião/ Só estou chamando os homens sábios para a comunhão”.

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