O que diria meu pai?

Alterado, o pai xingava Lazzaroni – “lazarento, põe o Bebeto”. O pai tinha sido volante (depois, técnico) muito elogiado. “Eu era batedor oficial e nunca perdi pênalti”, se vangloriava. A mãe preparava a janta e pedia calma: “Vai ter enfarte por causa dessa besteira de futebol”.

Meio zen, o tio parecia entretido em picar fumo e colocá-lo na palha, mas sofria com o jogo e custava falar: “Que barbaridade!” A frase só era dita em ocasiões especiais e vinha respaldada por tom cerimonioso. Experimente voltar na leitura e, sem esquecer o tom solene, repita: “Que barbaridade”. Era exatamente assim.

A vó, fritando a especialidade da casa (torresmo do porco sacrificado naquela manhã), estava tomada de apreensão incomum para quem engrossava a estatística de analfabetos em futebol. “Quanto tá?” Respondo que estamos perdendo, gol do Caniggia. “Quem?” Eu repeti: “Caniggia, da Argentina.” Ela desdenhou: “Nunca ouvi falar”.

Jogava pérolas aos porcos, mas precisava comentar a jogada, pois, pré-adolescente, não me sentia à vontade diante do pai. “Vó, o Maradona saiu de quatro brasileiros e rolou para o centroavante do Atalanta ficar sozinho na frente do gol” “Centroavante da onde”?

Ouvi a pergunta, mas já estava bem longe da cozinha, queria ver o desfecho e peguei Pelé afirmando que Deus era brasileiro e, sendo assim, iríamos ganhar. Careca, na despedida em Campinas, tinha dito ao Diário do Povo: “Vamos trazer o caneco”. Não teve caneco e, tempos depois, descobri a nacionalidade de Deus. Era, de fato, brasileiro – e argentino, senegalês, russo, sírio, japonês, marroquino, australiano, chinês, americano, alemão.

Lembrei-me do pai vendo Suíça e Suécia e pensando em qual seria a impressão dele da Copa? Ninguém lhe era suficientemente bom. “Pelé? Um atleta completo, pai”, eu provocava. “’Não reconheceu a filha”, rosnava, sem que eu pudesse entender a relação entre as duas coisas. E Kaká? “Corre de boca aberta e tem canela grossa” E o que pensaria do Neymar?

Não percebo, fecho os olhos e durmo. Três minutos de cochilo no sofá, tempo para o pai me visitar em sonho. Digo-lhe que o camisa dez da seleção tem canela fina, fecha a boca ao correr, dribla, é bom jogador, faz gols. A resposta vem cheia de veneno: “Mas não para em pé. Mimado, criamos um monstrinho”.

Eu o defendo: “Caçam o Neymar o tempo todo, pai”. De bate-pronto: “Porque ele provoca os adversários; semeia vento, colhe tempestade”. Não me dou por vencido. “Vou lhe mostrar o vídeo do pisão que ele levou de um mexicano” Ele olha e fulmina: “se o efeito fosse proporcional ao xilique, ele teria ido pra UTI”.

A equipe não depende só do Neymar, eu lhe explico. Temos ótimos jogadores e uma seleção forte dirigida pelo melhor técnico do Brasil. “O seu Corinthians foi campeão mundial com o Tite”, lhe conto. “Bom, isso muda a história. Se ganhou título no Timão, é de confiança”, aquiesce.

Abro os olhos com o locutor da Globo gritando gol da Suécia e toda atmosfera onírica começa a se desfazer. No entanto, as vozes-fantasmas seguem incessantes reverberando no meu ouvido no restante do dia.

“Põe o Bebeto!“. Por medo, ninguém o contestava; apenas o observávamos em respeitoso silêncio. “Que barbaridade!” Permanecíamos mudos como se o tio tivesse proclamado uma profecia. “Vai ter um enfarto”, dizia a resignada mãe arrumando a mesa onde comeríamos fausto jantar. “Centroavante da onde?”

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