Escrito nas Estrelas

Alfred !Haneb é um bosquímano que trabalha como guia no deserto da Namíbia. O ponto de exclamação não é um erro de digitação, mas o código linguístico para a língua dos “cliques”, e deve ser lido como um estalido da língua sobre o palato. Os ! Kung, povo nômade do Kalahari, os mais estudados, vivem da caça e da coleta representam uma espécie fóssil social para como teria sido o modo de vida mais antigo da espécie humana. Vivendo em grupos, com não mais de 150 pessoas, criando filhos de idades diferentes juntos, vestindo-se com peles de animais, com uma dieta pobre em carne e rica em tubérculos, com pouca cultura material, compatível com seus deslocamentos constantes, os bosquímanos são uma população minoritária em países do sul da África.

Nesta segunda feira Alfred !Haneb estava me explicando como funcionava o ritual de cura característico de de seu povo. O xamã sai do corpo e faz uma viagem em uma certa direção onde estão os espíritos malignos. Na volta ele traz uma parte destes espíritos, por isso as crianças tem que ficar em uma fogueira bem longe quando isso acontece, senão podem ser levadas embora pelos espíritos. Estávamos no cemitério das árvores acacianas, entre a duna 47 e a duna Papa e ele usava uma varinha, para desenhar os detalhes do processo de cura quando eu comecei a perguntar qual era o papel da posição das estrelas neste processo. Ele obviamente olhou espantando para mim, pois estrelas não tem nenhum papel para seu povo, que se orienta no deserto comendo tipos diferentes de arbustos, ingerindo o pouco líquido de seus frutos e usando a localização destes para não se perder. Ele já tinha me dito isso, mas eu insistia no papel das estrelas, que na verdade é importante apenas para os povos do norte da África subsassariana. Na segunda vez que fiz o mesmo erro uma ideia atroz riscou minha mente: que dia é hoje? Segunda, respondeu Alfred. Meu deus do céu que não existe para os bosquímanos da Namíbia! O jogo do Brasil é hoje !(exclamação sem clique).

A quantidade de vôos, conexões e voltas necessárias para chegar ao acampamento de Kulala tinha atrapalhado as datas. Resultado: estava no meio do deserto, sem televisão ou qualquer outro meio de comunicação, exceto rádio transmissor, há menos de três horas do jogo decisivo entre Brasil e México pelas oitavas de final da copa da Rússia. Para minha surpresa mais completa Alfred parecia entender cada vírgula de meu desespero. Para piorar, em nosso hotel, por uma destas deliberações orgulhosamente naturalísticas e ideologicamente purificantes não havia televisão. Ao nosso lado um casal de Hong Kong testemunhava, impotente, o colapso bio-psico-social oferecendo, misericordiosamente, seus celulares, sem sinal.

Quando estávamos na duna 7 Alfred parou seu 4×4 e depois de uma pausa meditativa anunciou: vocês podem assistir o jogo no alojamento dos funcionários. Temos acompanhado a Copa por lá e o pessoal vai gostar de conhecer brasileiros.  O júbilo da solução me impediu de perceber o alcance do gesto de nosso amigo bosquímano. Chegando lá percebemos que a situação não tinha precedentes. Umas quinze pessoas, dos mais diferentes grupos étnicos namíbios, sem falar em um ou outro  angolano ou zimbábue. Nos receberam com o que tinham de melhor, ainda que nublados por uma timidez generalizada.

O primeiro tempo tinha acabado em zero a zero e eu cheguei perguntado como estava a partida, quem estava melhor e se o Brasil estava bem. O inglês teria sido uma língua comum não estivesse ele misturado com africâner, alemão, sotaques impronunciáveis e gesticulações de todo tipo. Consegui entender pela mímica que um dos times estava em “bolinho”, o outro “em revoada”, mas não dava para saber qual era qual. Um barbudo no canto da sala repetia baixinho: Firmino. Dois outros discutiam o cabelo do Marcelo. Outro provocava seu parceiro apontando-o com o dedo e sussurando: torce para o México. Tinham me reservado uma cadeira solene no melhor lugar da sala, mas jogo do Brasil se assiste de pé. Isso criou um imediato desequilíbrio que o futebol me impediu de perceber.

Pouco antes de começar o segundo tempo comecei a localizar o que estava acontecendo. Provavelmente éramos os primeiros brancos a colocar os pés naquele acampamento onde homens e mulheres seguiam regras estritas que o futebol havia suspenso naquela tarde. Ao entrar no acampamento com esposa e filha, isso indiretamente autorizava a presença e curiosidade de outras mulheres no recinto. De fato, logo depois apareceram uma senhora de roupão, em seguida a cozinheira,  depois outra com seu filho  nas costas. Também dei-me conta que Alfred era muito mais velho do que todos os outros. Proveniente de um grupo social tido como inferior ele havia galgado autoridade sobre os outros graças aos anos de trabalho prestado. Ele usara seu prestígio para criar a exceção que estávamos vivendo graças ao futebol.

A tensão dos primeiros minutos de jogo se misturava com a progressiva realização da situação na qual nos encontrávamos. A percepção crescente de que apesar da imensa receptividade eles estavam constrangidos com nossa presença. Tentei distribuir pipoca que trazíamos nos mantimentos, um a um, para retribuir a acolhida, Ajudou, mas não resolveu.

De repente o jogo ficou aberto. Lá e cá, chances para Brasil e México como se a posição de volante tivesse sido abruptamente abolida do futebol. Contra-ataque mexicano armado, Wiliam e Paulinho desperdiçando chances dentro da área como se fosse a casa da mãe Joana. O carinha do meu lado direito continuava a repetir: Firmino, e eu respondia, para todos os efeitos: Jesus. Cartões amarelos sortidos e fartos. Todo mundo nervoso pelos mais variados motivos. Neymar caçado em campo, mas caindo de novo e de novo. Concílio africano segundo para decidir o assunto em estado de VAR permanente.

Foi quando Neymar menino achou aquele biquinho para dentro do gol decretando a dança da alegria. Quando vi estávamos todos nos abraçamos, o que foi a senha para um amontoado de gente pular, dançar e gritar junto, como que a aprender como se comemora um gol do Brasil. Pelo que descobri se comemora de um jeito bem africano. Eles é que não sabiam que era assim. E veio o segundo gol, e o rapaz na minha direita abriu as mãos, inclinou a cabeça e disse, desta vez em alto e bom som: Firmino ! Um carregador de dois metros e meio por quatro, mistura de Ronaldão com Kleber, em estilo Michael Jordan, vibrava jogando as pessoas para cima, inclusive eu com meus mais de 100 kilos.

Não, a luta de classes não acabou porque o Brasil ganhou do México. A segregação racial não cedeu um milímetro sequer, nem no sul da África nem no profundo do Brasil. A condição da mulher pode ter até piorado como efeito local do desequilíbrio causado pelo jogo, afinal reforçando um esporte eminentemente masculino. Se formos campeões isso não nos fará esquecer nossas dificuldades políticas, mas eventualmente elas ficarão mais claras. Mariele continuará morta e nós querendo saber quem a matou. Contudo, para mim, o assassinato de jovens negros de periferia tornou-se ainda mais indigno, e a indiferença para com isso, ainda mais intolerável.

Alfred ficou contente com a camiseta azul da seleção brasileira que eu deixei com ele, em homenagem aos serviços prestados aos brasileiros desamparados. Mas ele continuará sua sina como guia no deserto da Namíbia e como líder de um grupo de trabalhadores anônimos e explorados. O futebol não é uma força social transformadora. O mais provável é que ele seja herdeiro de arcaicas determinações nacionalistas, apoiado por identificações de massa e expresso em uma nova religião do consumo imaterialista. O novo ópio do povo, o novo espírito de uma época sem espírito.

Depois desta segunda feira, em julho de 2018, teremos uma história  para lembrar, uma viagem xamânica para uma fogueira distante, onde aprendi um pouco mais sobre a natureza de nossos problemas e esqueci um tanto mais sobre a facilidade de nossas soluções. Estava escrito nas estrelas sim, ainda que nem sempre sabemos ler o que elas nos dizem. Mais importante que isso: as estrelas nem sempre estão lá onde nós imaginamos.

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